Publicado: 01/11/2024
Introdução: A garantia do direito ao alimento para a população em situação de rua (PSR) é um processo complexo e multifacetado que envolve equipamentos públicos, serviços de acolhimento e instituições filantrópicas, assim como os colaboradores inseridos nesses locais. Objetivo: Compreender as percepções de profissionais de serviços que oferecem refeições para a PSR sobre quais aspectos devem guiar a oferta da alimentação no serviço para que essa seja entendida como adequada e saudável. Materiais e métodos: Pesquisa qualitativa exploratória com realização de entrevistas semiestruturadas com funcionários de três serviços do centro da cidade de São Paulo, que oferecem refeições prontas à PSR, e que estão inseridos nas etapas do planejamento, preparo e/ou distribuição do alimento. As entrevistas foram analisadas utilizando-se o método de análise de dados qualitativos no qual são construídas, indutivamente, categorias. Resultados: Para que a alimentação servida seja entendida como adequada e saudável, na percepção dos colaboradores, é indispensável que esta considere aspectos nutricionais e de segurança do alimento, respeitando diretrizes, características sensoriais da refeição em si e dimensões simbólicas socioculturais e representativas em torno da comida, como pedidos da própria PSR. Conclusão: É importante explorar e discutir os entendimentos sobre a alimentação oferecida para a PSR, visando orientar o planejamento de ações voltadas para essa população que assegurem seu direito ao alimento e sua dignidade alimentar através de uma alimentação adequada e saudável. Arch Latinoam Nutr 2024; 74(3): 188-198.
Palabras clave: população em situação de rua, direito humano à alimentação adequada, serviços de alimentação.
Introduction: Guaranteeing the right to food for the homeless population (HP) is a complex and multifaceted process that involves public equipment, reception services and philanthropic institutions, as well as the employees working in these places. Objective: To understand the perceptions of service professionals who offer meals for the HP about which aspects should guide the supply of food in the service so that it is understood as adequate and healthy. Materials and methods: Exploratory qualitative research with semi-structured interviews with employees of three services in the downtown area of the city of São Paulo, which offer ready-made meals to HP, and who are involved in the stages of planning, preparing and/ or distributing the food. The interviews were analyzed using the method of qualitative data analysis in which categories are constructed inductively. Results: For the food served to be understood as adequate and healthy, in the perception of employees, it is essential that it considers nutritional and food safety aspects, respecting guidelines, sensory characteristics of the meal itself and symbolic social culture and representative dimensions around the food, such as requests from the HP itself. Conclusions: It is important to explore and discuss the understanding of the food provided to the HP, aiming to guide the planning of actions for this population that ensure their right to food and their food dignity through adequate and healthy nutrition. Arch Latinoam Nutr 2024; 74(3): 188-198.
Keywords: homeless persons, human right to adequate food, food services.
https://doi.org/10.37527/2024.74.3.004
Autor para lacorrespondencia: Thifany Helena Torres, e-mail: [email protected]
A alimentação enquanto um direito humano fundamental é uma concepção recente. Instaurada em 1948, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi posteriormente consagrada no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a partir do qual surge a expressão "Direito Humano à Alimentação Adequada" (DHAA) (1,2). No Brasil, esse reconhecimento está presente na Constituição Federal desde 2010, a partir da Emenda Constitucional n. 64 (3). Além disso, esse direito é garantido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), de 2006, que institui o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, responsável por formular políticas, planos e ações para a realização desse direito (4). O processo de alcance do DHAA é multifacetado e, quando inserido no contexto da realidade da população em situação de rua (PSR), se complexifica.
Ser/estar em situação de rua constitui-se em um universo de realidades, diversidades, circunstâncias e fatores e, assim, é irreal a tentativa de definir a PSR a partir da perspectiva de uma categoria única. São diferentes indivíduos, como crianças, adolescentes, adultos e idosos, inseridos em distintos grupos; cada um destes com suas histórias, significados e trajetórias (5). Essas pessoas são constantemente estigmatizadas e rotuladas como improdutivas, preguiçosas, anormais, desajustadas, sujas, perigosas, marginais, subversivas. Além disso, são privadas de necessidades básicas de vida- como moradia - e estão imersas em um cenário de exclusão, isolamento social e negação de sua identidade enquanto sujeito e ser humano (6,7).
Somado ao contexto de pluralidades e complexidades, encontra-se a necessidade do alimento. Em uma análise documental, Torres, Scagliusi, Sabatini (8) mapearam os principais caminhos e desafios da PSR para garantir o DHAA - com foco no contexto da pandemia de Covid-19. Dentre os caminhos, destacam-se iniciativas governamentais, ações de solidariedade e reivindicações da própria PSR por meio de organização política (8). No contexto observado pelas autoras, encontram-se os restaurantes populares - Equipamentos Públicos de Segurança Alimentar e Nutricional - uma ação concreta da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional determinada pela LOSAN, que visa promover a segurança alimentar e nutricional e assegurar o DHAA aos cidadãos brasileiros (9). Nesse mesmo contexto, incluem-se serviços de acolhimento e instituições beneficentes e/ou filantrópicas que também se propõem a oferecer refeições prontas e/ou alimentos para a PSR. Cada um desses serviços citados possui suas especificidades quanto às formas de acesso e organização para o oferecimento das refeições.
Ao se considerar que os equipamentos e serviços são concebidos pelos(as) colaboradores(as) que ali se inserem, o que é pensado, produzido e ofertado nesses locais perpassa saberes, percepções, vivências, crenças e estigmas desses indivíduos. Estes são compostos por uma diversidade de pessoas de diferentes gêneros, raças, níveis de escolaridade, renda e ocupação, cada qual com sua particularidade, realidade e experiências variadas, que, em conjunto com os usuários do serviço, constituem um local único. Nesse contexto, o oferecimento do alimento e a concretização do DHAA se constrói e se dá a partir desses entendimentos e perspectivas diversas.
A partir disso, o presente trabalho teve como objetivo compreender, a partir das percepções de profissionais de serviços que oferecem refeições para a PSR, quais aspectos devem guiar a oferta da alimentação no serviço para que essa seja entendida como adequada e saudável, visando contribuir para a garantia do direito à alimentação e da dignidade alimentar à PSR, em vista do contexto de vulnerabilidade e insegurança alimentar e nutricional no qual essa população insere- se.
O presente estudo, realizado entre novembro de 2022 a dezembro de 2023, trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória, com realização de entrevistas semi- estruturadas com funcionários de serviços - localizados no centro da cidade de São Paulo, no Brasil - que atendem a PSR, oferecendo refeições prontas. A região central da cidade de São Paulo foi escolhida em vista da concentração da PSR nesse local - evidenciada pelo último censo da PSR no município, que apontou que 49,16% dos indivíduos recenseados encontravam-se na zona central de São Paulo (10). A partir disso, o centro constitui-se enquanto um local importante para busca de pernoite, acolhimento, doações e alimentos, concentrando espaços destinados à PSR, como serviços de alimentação. A Figura 1 mapeia os principais equipamentos públicos de alimentação e socioassistenciais na região central de São Paulo, que oferecem refeições prontas para a PSR. Com base no mapeamento, e visando maior abrangência dos diferentes tipos de serviços presentes, escolheu-se três locais para o estudo: entidade beneficente de assistência social (EBAS), centro temporário de acolhimento (CTA) e restaurante popular (RP) (Figura 1).
A população do estudo consistiu em colaboradores(as) distribuídos nos três serviços elencados que estivessem inseridos(as) em atividades chave dentro do fluxo operacional planejamento-preparo-distribuição da refeição, como nutricionistas ou responsáveis técnicos; cozinheiros(as) e auxiliares de cozinha; e funcionários(as) responsáveis pela distribuição dos alimentos. Foram elencados estes cargos, pois acredita-se que essas pessoas estão inseridas em etapas-chave no sentido de um contato direto com o alimento e um possível poder de autonomia para alterar o cardápio em qualidade ou quantidade (11).
A inserção no campo iniciou-se em janeiro de 2023 a partir da aproximação da primeira autora com a EBAS e, posteriormente, com os outros serviços, desdobrando-se em idas frequentes aos locais. A partir da assiduidade, frequência e disponibilidade nas visitas, construiu-se uma relação de pertencimento da pesquisadora ao campo, de forma que esta era vista como parte constituinte da equipe. Esse movimento de pertencimento foi indispensável para criação de vínculo com os(as) colaboradores(as) e familiarização com as dinâmicas de preparo e oferecimento das refeições, assim como para uma produção de entrevistas densas e em profundidade, possibilitadas pelas relações de confiança e afeto estabelecidas. Posteriormente, a permissão dos(as) gestores(as) para recrutamento dos(as) colaboradores(as) foi solicitada e esses(as) foram convidados(as) para a realização das entrevistas, conforme a disponibilidade - com apresentação prévia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para a definição da amostragem, enquanto referência inicial, foi utilizado o critério do esgotamento das respostas, com estimativa de realização de 6 a 12 entrevistas para a saturação dos dados, como observado por Guest, Bunce, Johnson (12). Tal estimativa confirmou-se no decorrer da produção dos dados, de forma que os mesmos padrões de respostas começaram a ser encontrados, totalizando-se 12 entrevistas realizadas.
As entrevistas buscavam compreender o que era considerado relevante e indispensável na alimentação oferecida no serviço para que ela fosse uma Alimentação Adequada e Saudável (AAS) para a PSR usuária do serviço. Os roteiros, com perguntas em uma ordem pré- definida, predominantemente abertas, foram adaptados de acordo com a etapa na qual o(a) colaborador(a) se insere, pois entende-se que as diferentes etapas e atividades específicas, influenciam em diferentes concepções. Optou-se pela realização de entrevistas semiestruturadas, pois possibilitam respostas espontâneas e flexíveis, favorecendo a imersão da entrevistadora nos entendimentos e particularidades do(a) entrevistado(a) sobre a temática (13,14). Somada às entrevistas, foi utilizado o diário de campo para registro de observações e reflexões pessoais, auxiliando na compreensão dos movimentos da pesquisadora em campo e das dinâmicas entre as vivências desta e as vivências dos(as) participantes do estudo (15).
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP (parecer 65060522.0.0000.5421). Além disso, é importante ressaltar que ao longo da pesquisa - desde a sua concepção até a interpretação dos resultados - foi feito o exercício de reflexão da pesquisadora sobre sua posicionalidade enquanto mulher cisgênera, branca, heterossexual, alojada e de classe média. Nesse sentido, todas as dinâmicas e interações de pesquisa se construíram em torno de relações de poder que lhe proporcionam privilégios e que foram consideradas e refletidas ao longo de todo o processo, orientando uma perspectiva crítica e reflexiva (16, 17).
As entrevistas foram gravadas e transcritas. A análise das transcrições foi realizada a partir do método proposto por Burnard (18) para análise de dados qualitativos, por meio de um processo indutivo no qual as categorias são construídas a posteriori. De forma resumida, esse processo seguiu as seguintes etapas: I. familiarização e imersão no material; II. codificação aberta; III. revisão e agrupamento das categorias; IV. codificação dos dados a partir da lista final de categorias e subcategorias. Em adição, foi elaborada uma versão simplificada do Codebook recomendado por MacQueen et al. (19) para codificação de todo o material das transcrições, como realizado por Scagliusi et al. (20). A codificação foi realizada pela pesquisadora com posterior revisão e discussão das categorias com outra pesquisadora independente. Um fluxograma resumido das etapas do estudo é apresentado na Figura 2.
Os resultados são apresentados e descritos a partir das categorias, utilizando citações dos(as) participantes do estudo, que foram identificados(as) pelos cargos e serviços nos quais inserem-se e por nomes fictícios. Ademais, são descritas as presenças dos temas construídos entre os serviços e nas etapas do fluxo operacional planejamento- preparo-distribuição.
Participaram do estudo 12 colaboradores(as), com idades entre 28 e 54 anos, sendo 10 participantes do sexo feminino e 2 do sexo masculino; 75% dos(as) participantes identificavam-se enquanto pretos(as) ou pardos(as). A distribuição dos(as) participantes entre os serviços e inserção destes(as) no fluxo operacional de planejamento-preparo-distribuição das refeições para a PSR está detalhada no Tabela 1.
Para a compreensão das percepções dos(as) colaboradores(as) sobre quais aspectos devem guiar a oferta da alimentação para a PSR para que esta seja entendida como adequada e saudável, foram construídas indutivamente 8 categorias, descritas no Tabela 2, juntamente às suas presenças ou ausências nos serviços e nas etapas do fluxo operacional planejamento-preparo-distribuição. Além de descritas no Tabela, as 8 categorias estão descritas detalhadamente abaixo.
A ideia de que a alimentação deve "ter sustância" emergiu como um aspecto considerado relevante, trazendo o sentido da importância de ser oferecida, para a PSR, uma refeição vigorosa e robusta que nutre a pessoa que está se alimentando. Abrangeu a relevância da variedade de alimentos presentes no prato e trouxe nuances de preparações específicas, como a sopa oferecida no pernoite de uma das instituições, que, pela presença de diversos ingredientes e pelo cozimento demorado, torna-se algo substancioso. Abrangeu também a ideia de que "não importa o que você vai fazer, desde que o prato esteja cheio, com amor e carinho, é uma boa alimentação. Eu acho que conforta a alma, o coração" [Rosa, técnica em nutrição, RP]; ampliando a noção da sustância para algo que vai além de sanar a fome.
Ainda na perspectiva da composição do prato ofertado, a concepção de que a comida deve "ser algo que seja comum ao prato do brasileiro" apareceu, trazendo a ideia de oferecer uma refeição "que qualquer um pode vir e comer" [Acácia, nutricionista, RP], abrangendo a noção de ser um cardápio semelhante aos dos restaurantes "comuns", com o oferecimento diário de um prato que contenha arroz, feijão, uma fonte de proteína e uma salada e com a presença de preparações típicas, como feijoada às quartas-feiras, por exemplo. Nuances sobre ser uma comida acessível, de boa qualidade e que atenda à necessidade alimentar da maioria das pessoas também surgiram.
Para além de questões sobre a composição do prato, na perspectiva dos(as) funcionários(as), a alimentação deve "atender a questões sensoriais":
Eles [as pessoas em situação de rua] elogiam muito. Eles falam que a comida é muito gostosa… que a comida sobe bem quentinha… que eles gostam, elogiam muito… [...] isso é perceptível, né? Um arroz bem soltinho, um feijãozinho bem temperadinho. Pode ser a carne mais simples, uma linguicinha que for, mas vem aquele molhinho, vem aquele caldo. [Violeta, responsável pela distribuição, EBAS]
Como ilustrado pelo trecho acima e, para além deste, os(as) colaboradores(as) consideram que a alimentação deve ser pensada, preparada e servida abrangendo elementos como temperatura do alimento, suculência, sabor, tempero, cheiro e aparência. Além disso, surgiram nuances sobre a relevância da comida ser servida fresca e ser feita na hora e no próprio serviço e de serem feitas modificações no cardápio de acordo com o clima, servindo suco em dias mais quentes e sopa em dias mais frios, por exemplo.
Emergiu também a compreensão de que a alimentação deve "atender a questões nutricionais", no sentido de ser importante se pensar sobre aspectos nutricionais, sobretudo em relação aos alimentos, ao longo de todas as etapas do fluxo operacional de planejamento- preparo-distribuição - porém mais fortemente nos dois primeiros momentos. Abarca a importância da inclusão de frutas, legumes e verduras; e a valorização das fontes de proteínas e da variedade destas. Traz a crítica quanto ao uso de alimentos vistos como ultraprocessados:
Uma coisa assim que eu acho importante que lá usa e que eu acho que não é bom, é caldo de galinha e caldo de carne... pronto! Porque assim, lá usa muito [...] e isso não é bom. Porque tem muito sal e tem muita química e isso não é bom pro organismo. [Melissa, auxiliar de cozinha, EBAS] ao mesmo tempo que se valoriza uma alimentação com produtos entendidos como mais naturais: "Quando tem… purê de batata. [...] Não é aquele que vem no saco. [...] É uma coisa que eles ficam muito alegres. Porque [...] é da batata. Não é aquele em pó. [...] Então, tem todo um preparo pra aquilo ali" [Margarida, cozinheira, EBAS].
O entendimento sobre alimentos "base da alimentação" - arroz e feijão - também é abrangido nessa categoria, assim como as percepções sobre como saber se a preparação ofertada é completa e/ou tem os nutrientes "adequados", com nuances da presença de 5 cores no prato indicar um prato saudável, por exemplo.
No prisma de temas mais específicos, foi apontado que a alimentação deve "seguir diretrizes", no sentido das etapas que envolvem a alimentação do serviço se adequarem a regras da prefeitura, às normas da organização responsável pelo serviço e a procedimentos sobre manipulação de alimentos (exemplos: Portaria 45 da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo e Manual de Boas Práticas da Prefeitura de São Paulo). Tais diretrizes abrangem a composição do cardápio - tanto no sentido de ele ser entregue pronto por um destes órgãos, quanto de impedimentos na inclusão de alimentos específicos durante a montagem do cardápio pela própria instituição.
Abrange também questões de controle de qualidade da alimentação, como controle de temperaturas e orientações sanitárias para o momento da distribuição da comida. Em algumas falas surgiram nuances do cardápio e das preparações serem previamente definidos e da importância de seguir aquela definição: "A gente tem um guia também, que tem tudo o que é pra usar [nas preparações]. Então, por exemplo, hoje é carne a caçadora. [...] Tudo que tá descrito lá tem que tá aí. [...] Tem que tá tudo certinho" [Acácia, nutricionista, RP].
Numa direção semelhante à categoria anterior, emergiu a concepção de que a alimentação deve "ser uma comida segura", na noção de ser "aquilo que ela [a pessoa em situação de rua] pode comer sem ter receio nenhum de que vai fazer algum mal pra ela [...], que ela tem a certeza de que aquele [alimento] ali foi bem preparado, não vai causar nenhum mal e vai saciá-la" [Cosmo, responsável pela distribuição, EBAS]. Abrange a ideia de ser um alimento que foi previamente higienizado, que não está contaminado de alguma forma e que também é ofertado de forma segura. Foi muito presente o contraponto entre a segurança da refeição ofertada e o risco dos alimentos que são pegos no lixo e foram observadas nuances no sentido da saúde da pessoa que come - tanto da PSR, quanto dos(as) próprios(as) colaboradores(as) que se alimentam no serviço - ser responsabilidade desses(as) funcionários(as) que estão em contato com o alimento.
Para além de questões que envolvem os alimentos em si, também se revelou importante a percepção de que a alimentação deve "se adequar a questões logísticas e organizacionais do serviço”, devido aos fundos financeiros das instituições se originarem da prefeitura municipal, em conjunto com recursos próprios e doações ocasionais. Dessa forma, apareceu muito fortemente o desafio com relação a verbas limitadas e ao manejo dos gastos do serviço:
Por verba pública é, praticamente, impossível alcançar o que eles [órgãos municipais] exigem. Não é compatível o que eles investem com o que eles exigem… [...] o que faz toda a diferença para que a gente, às vezes, sirva um legume, sirva uma verdura, são os doadores. [...] Porque eu acho que sem os doadores a gente não conseguiria trazer um pouco mais de variedade pro cardápio, né. E… eu acho que ainda tem muita coisa que pode ser melhorada, mas que eu não acho que seja um problema institucional. É um problema, mesmo, de verba [Jasmim, nutricionista, EBAS].
São trazidos aspectos como adequação do que é ofertado em relação a orçamento, padrões e limites da distribuição e da quantidade do alimento e fatores que influenciam a delimitação e execução do cardápio (sazonalidade, custo, praticidade, doações, validade dos alimentos).
Por fim, o entendimento de que a alimentação deve "considerar pedidos da população em situação de rua” também se mostrou presente, no sentido da tentativa de atender a pedidos específicos de preparações, como macarrão e fígado; mas também na ideia de buscar incluir preparações diferentes que os usuários possam gostar:
Então eu sempre tô fazendo uma coisinha ou outra diferente. [...] Não é porque eles tão aqui que eles vão deixar de querer comer alguma coisa… [...] Eu gosto de fazer essas coisas. O dia que eu tô muito inspirada eu faço um pudim sorvete, que é uma sobremesa que eles não têm tanta condição de ter o contato diário… [Camélia, cozinheira, CTA].
No contexto da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) mais recente - 2013 -, a AAS pode ser entendida enquanto uma alimentação acessível física e financeiramente, que se adeque em quantidade, qualidade, aspectos biológicos, sociais, econômicos, de cultura alimentar, às práticas sustentáveis e às necessidades da pessoa que come (21). Tal concepção foi pensada visando se adequar à maioria da população brasileira, porém tais noções sobre alimentação ainda são pensadas por categorias dominantes da construção do conhecimento e não consideram as particularidades de populações vulneráveis e socialmente excluídas, como a PSR (22,23). Nesse sentido, a partir da perspectiva dos(as) participantes do presente estudo, uma AAS para a PSR engloba aspectos de diferentes dimensões, dialogando com o conceito definido pela PNAN, mas também extrapolando tal concepção.
O tema "atender a questões nutricionais" esteve presente em todos os serviços e etapas do fluxo operacional planejamento- preparo-distribuição. Essa percepção da importância das questões nutricionais para uma AAS esteve atrelada à nutrientes específicos e à oferta da soma de nutrientes no prato. Tal noção extrapola a visão dos(as) profissionais responsáveis por pensar a alimentação ofertada - representados aqui por gestores(as), nutricionistas e técnicos(as) em nutrição -, estando presente, também, nas falas dos(as) responsáveis pelo preparo e distribuição do alimento. Nesse sentido, o olhar voltado para questões nutricionais pode ser compreendido enquanto uma consequência do "nutricionismo", conceito criado por Gyorgy Scrinis (24), a partir do qual há ênfase na composição nutricional dos alimentos para entender o quanto estes são saudáveis. A partir disso, nota-se que a ideologia descrita por Scrinis (24) se incorpora ao olhar dos sujeitos que se relacionam e trabalham com a comida, inserindo-se e influenciando seus entendimentos sobre AAS.
Ainda nessa temática, o julgamento em relação ao processamento dos alimentos ofertados esteve presente. O Guia Alimentar para a População Brasileira divide os alimentos em quatro categorias de acordo com seu grau de processamento e recomenda que alimentos in natura ou minimamente processados sejam priorizados e alimentos ultraprocessados evitados (25). Nessa lógica, as falas dos(as) participantes trazem essa concepção de que uma AAS é aquela mais natural, preparada com os alimentos em si e sem adição de outros componentes, como aditivos químicos. O estudo de Ramos et al. (26), realizado em Belo Horizonte (MG), verificou a frequência de ocorrência dos alimentos, de acordo com o grau de processamento, oferecidos em um restaurante popular do município, a partir da análise dos almoços servidos ao longo de 84 dias. Os resultados mostraram que os alimentos in natura ou minimamente processados são oferecidos com frequência (cerca de 75,6% dos dias), enquanto os alimentos ultraprocessados representam apenas 4,6% (26). Os dados e observações em campo nos três serviços referentes à presente pesquisa caminham na mesma direção do que foi observado pelas autoras em relação à frequência de oferecimentos desses alimentos. Porém, o presente estudo vai além, na medida que traz o julgamento dos(as) atores(atrizes) envolvidos(as) com a comida em relação a essa presença e como isso se relaciona com o entendimento de uma AAS, balizando essa compreensão a partir de aspectos como a alegria dos(as) usuários(as), por exemplo. Ou seja, o acesso a uma comida não ultraprocessada está relacionado ao sentimento de alegria gerado nos(as) usuários(as) do serviço ("é uma coisa que eles ficam muito alegres. Porque (...) é da batata. Não é aquele em pó" [Margarida, cozinheira, EBAS]). Nesse contexto de privação vivenciado pela PSR, o acesso ao mínimo - uma AAS - acarreta felicidade, evidenciando as diferentes formas pelas quais essa população é violada e negada de seus direitos primordiais, além de trazer à tona a necessidade de diretrizes voltadas a esse público.
Em uma perspectiva mais técnica, "seguir diretrizes" e "ser uma comida segura" trazem aspectos relativos à importância da normatização e da segurança do alimento servido, tanto para a saúde dos(as) comensais, quanto para a estruturação do serviço. A PSR sempre foi, e ainda é vista como estranha e é colocada à parte de uma sociedade que a estigmatiza enquanto suja e sujeita a aceitar qualquer coisa que lhes é oferecida (27,28). Nesse sentido, são naturalizadas práticas como o consumo de alimentos contaminados ou advindos do lixo. Em algumas percepções dos(as) participantes foi possível observar a distinção entre a responsabilidade do serviço enquanto um equipamento de alimentação que deve seguir normas para não ser notificado e a responsabilidade dos(as) próprios(as) usuários(as) se colocarem em risco. A partir disso, no contexto de serviços que oferecem alimentação para a PSR, no qual inserem-se as percepções desses(as) profissionais, é indispensável o cuidado para que estigmas construídos em torno dessa população não guiem práticas e condutas também estigmatizantes, fazendo-se fundamental retomar e reforçar os direitos desses indivíduos e a importância da garantia de sua dignidade (29).
Os temas "ter sustância" e "atender a questões sensoriais" conversam entre si trazendo representações sobre o alimento servido enquanto elementos importantes para uma AAS. O primeiro relaciona-se à fartura, à oferecer algo que possa alimentar e garantir a saciedade da pessoa que come, de forma que ela se sinta confortável; o segundo traz elementos que despertam os sentidos do(a) comensal, a partir do oferecimento de uma comida gostosa e que também remete ao conforto. Nessa perspectiva, a compreensão de uma AAS para a PSR perpassa o entendimento de que o comer é um fenômeno atravessado tanto por questões biológicas e nutricionais, quanto por questões simbólicas e subjetivas aqui destacadas (30). E, a partir disso, no processo de garantir o DHAA, por meio da formulação de políticas públicas, programas, ações e projetos de saúde, considerar tais subjetividades possibilita assegurar o direito ao alimento sob uma ótica mais integral e humanizada que garanta a dignidade alimentar à PSR.
A categoria "ser algo que seja comum ao prato do brasileiro" também traz aspectos simbólicos em torno do comer, abarcando o pertencimento das pessoas em situação de rua no sentido delas próprias se reconhecerem enquanto inseridas no cotidiano alimentar "comum" dos brasileiros por comerem um prato com composição ou preparações semelhantes ao distribuído em restaurantes voltados para o público em geral. Em outra perspectiva, o tema "considerar pedidos da população em situação de rua" traz essa noção de pertencimento ao próprio serviço a partir do preparo de pratos advindos de desejos dos(as) próprios(as) usuários(as) para que estes(as) se sintam escutados e acolhidos. Ambos os ângulos dialogam com o observado por Duarte, Brisola e Rodrigues (29) em estudo sobre as representações sociais sobre a comida e o comer na rua para a PSR em São José dos Campos (SP). As autoras observaram a distinção feita entre os contextos da comida do presente - que representa a sobrevivência, o fator biológico e o fornecimento de energia e relaciona-se aqui com a comida "comum" dos brasileiros - e da comida do passado - que remete a preparações que a pessoa gosta muito e que aqui podem ser acessadas pelos pedidos nos serviços. Por fim, a percepção sobre a importância da alimentação servida “se adequar a questões logísticas e organizacionais do serviço” perpassa todas as categorias. Para que as questões abordadas pelos demais temas sejam factíveis, é indispensável que estejam de acordo com a logística, o orçamento e a estrutura do serviço no qual se insere. É importante ressaltar que o principal aspecto emergente nessa temática e que se mostrou limitante para a continuidade das ações almejadas é o orçamento. Isso evidencia a necessidade urgente de iniciativas, como planos, programas e políticas municipais, estaduais e federais, que garantam recursos para a execução de ações voltadas à garantia do DHAA e à promoção de AAS, principalmente para populações vulneráveis, como a PSR.
A garantia do DHAA para a PSR se constrói enquanto um desafio em vista da complexidade do contexto na qual esses indivíduos estão inseridos. Os equipamentos públicos e serviços socioassistenciais constituem-se enquanto importantes atores nesse processo de assegurar o direito à AAS e, inseridos nesses locais, estão os(as) funcionários(as) responsáveis por pensar, produzir e distribuir essa comida, que carregam consigo entendimentos e experiências próprias.
A partir disso, o presente estudo evidenciou tais percepções destes(as) funcionários(as) acerca do que é indispensável estar presente na alimentação ofertada para a PSR para que essa seja entendida como adequada e saudável, perpassando aspectos biológicos e nutricionais, características da refeição em si e dimensões simbólicas e representativas em torno da comida. Estudos futuros podem relacionar tais dados com o perfil nutricional das refeições oferecidas nos serviços. Enquanto limitações da presente pesquisa, tem-se sua realização apenas na zona central de São Paulo e a presença das percepções apenas dos(as) colaboradores(as), mostrando- se indispensável dar ouvidos às vozes da PSR sobre sua alimentação que foi pensada, preparada e ofertada por terceiros.
Nesse sentido, os entendimentos dos(as) colaboradores(as) mostram-se relevantes de serem investigados e dialogados também com as percepções da própria PSR sobre o que é uma AAS destinada a ela própria, principalmente em contextos nos quais a autonomia da PSR torno do comer é restrita.
Além disso, faz-se importante ampliar essas compreensões para outros locais – dentro e fora da cidade de São Paulo – aprofundando e trazendo mais riqueza às discussões a partir de diferentes contextos. A partir disso, possibilita-se guiar e orientar o planejamento de políticas, programas e ações, nas esferas federais, estaduais e municipais, voltadas para a PSR que contribuam para a seguridade de seu direito ao alimento e dignidade alimentar.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), sob processo n. 88887.712404/2022-00 e da bolsa de produtividade CNPq sob processo n. 304385/2021-2.
As autoras declaram não possuir conflito de interesse.
Recibido: 10/06/2024
Aceptado: 14/08/2024