Artigo original

Associação entre insegurança e consumo alimentar em universitários brasileiros durante a pandemia de COVID-19

Lucas de Almeida Moura1 , Elaine Valdna Oliveira dos Santos1* , Alisson Diego Machado1 , Tiago Feitosa da Silva2 , Fernanda Andrade Martins3 , Clélia de Oliveira Lyra4 , Liana Letícia Paulino Galvão4 , Doroteia Aparecida Höfelmann5 , Patrícia Simone Nogueira6 , Dirce Maria Lobo Marchioni1 , Alanderson Alves Ramalho2

Resumo

Introdução. A COVID-19 impactou a garantia de uma alimentação adequada e saudável, inclusive entre universitários, que parecem constituir um grupo suscetível à Insegurança Alimentar (IA). Objetivo. Verificar a associação entre IA e marcadores de consumo alimentar em universitários durante a pandemia de COVID-19. Materiais e métodos. Estudo transversal com 5407 estudantes de instituições de ensino superior de todas as regiões do Brasil. Os dados foram coletados entre agosto/2020 e fevereiro/2021. O consumo alimentar foi avaliado por marcadores de alimentação saudável utilizados num inquérito nacional de saúde (VIGITEL). Os níveis de IA foram classificados pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar em Segurança Alimentar (SA) e IA leve, moderada e grave. A associação entre IA e marcadores de consumo foi avaliada por meio de regressão logística, considerando frequência semanal de consumo < 3 dias e ≥ 3 dias. Resultados. 37% dos universitários estavam em algum grau de IA. Verificou-se maior chance de baixa frequência de consumo de feijão (OR 1,81), verduras e legumes (OR 4,76), frutas (OR 3,99), lácteos (OR 3,98) e carnes (OR 3,41), e maiores chances de maior consumo de frango (OR 1,14) e ovos (OR 2,04) entre aqueles em IA (p<0,05). Em sua maioria, os valores foram mais expressivos quanto maior o grau de IA. Conclusões. Maiores níveis de IA mostraram-se associados a uma menor chance de consumo alimentar saudável por universitários. Instituições de ensino superior podem executar papéis importantes no combate e assistência à IA nessa população. Arch Latinoam Nutr 2023; 73(3)S2: 84-91.

Palavras chave: segurança alimentar e nutricional, consumo alimentar, COVID-19.


Original article

Association between food insecurity and consumption in Brazilian university students during the COVID-19 pandemic

Abstract

Introduction. COVID-19 has impacted access to an adequate and healthy diet, including university students, who seem to constitute a group susceptible to Food Insecurity (FI). Objective. To verify the association between FI and food consumption markers in university students during the COVID-19 pandemic. Materials and Methods. We conducted a cross- sectional study with 5407 students from higher education institutions from all regions of Brazil. Data were collected between August/2020 and February/2021. We evaluated food consumption using the healthy eating markers from a Brazilian national health survey (VIGITEL). We classified the FI levels according to the Brazilian Food Insecurity Scale into Food Security (FS) and mild, moderate, and severe FI. We evaluated the association between FI and consumption markers using logistic regression, considering the weekly frequency of consumption of < 3 days and ≥ 3 days. Results. 37% of the university students had in some degree of FI. We found a greater chance of lower frequency of consumption of beans (OR 1.81), vegetables (OR 4.76), fruits (OR 3.99), dairy products (OR 3.98), and meat (OR 3. 41), and greater chances of increased consumption of chicken (OR 1.14) and eggs (OR 2.04) among those in FI (p<0.05). Overall, the values were more expressive the higher the degree of FI. Conclusions. Higher FI levels were associated with a lower chance of healthy food consumption in university students. Higher education institutions can play a relevant role in addressing and administering the FI in this population. Arch Latinoam Nutr 2023; 73(3)S2: 84-91.

Keywords: food security and nutrition, food consumption, COVID-19.


https://doi.org/10.37527/2023.73.S2.010

  1. Departamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo - SP, Brasil.
  2. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Acre, Rio Branco - AC, Brasil.
  3. Centro de Ciências da Saúde e do Desporto, Universidade Federal do Acre, Rio Branco - AC, Brasil.
  4. Programa de Postgrado en Ciencias de la Salud, Universidad Federal de Rio Grande do Norte, Lagoa Nova, Natal - RN, Brasil;.
  5. Programa de Pós-Graduação em Alimentação e Nutrição, Universidade Federal do Paraná, Curitiba - PR, Brasil. 6 Departamento de Alimentos e Nutrição, Universidade Federal de Mato Grosso, Boa Esperança, Cuiabá - MT, Brasil.
  6. Autor para la correspondencia: Alanderson Alves Ramalho, e-mail: [email protected]

Introdução

A crise global provocada pela pandemia de COVID-19 constituiu um dos principais obstáculos de saúde enfrentados pelo mundo neste século (1, 2), contribuindo para o aumento das iniquidades sociais em todo o mundo, como a Insegurança Alimentar (IA), que tem a fome como a sua expressão mais grave e é um problema multidimensional, aprofundado com o modo como a pandemia foi conduzida nos países, sobretudo no Brasil (3-5).

Dados dos mais recentes inquéritos nacionais realizados revelaram que as prevalências de IA no país, em 2020 e 2022, foram de 55,2% e 58,7%, respectivamente. Quando considerada somente a IA grave, especificamente, essa prevalência foi de 9,9% em 2020 (19,1 milhões de pessoas) e de 15,5% (33,1 milhões) em 2022 (6, 7).

O cenário de rápida evolução da transmissão comunitária do vírus da COVID-19 no Brasil suscitou medidas como o isolamento social, com fechamento do comércio, adoção do trabalho remoto e suspensão das aulas presenciais em todas as instituições de ensino, incluindo as universidades (5, 8), comprometendo a Segurança Alimentar (SA). Mesmo antes da pandemia, estudantes universitários brasileiros já experienciavam a IA (9). Com o advento da COVID-19, isto foi ainda mais exacerbado, o que foi constatado por estudos que verificaram em diferentes países altas prevalências de IA entre os estudantes e sua associação com raça/ cor de pele, perda ou redução da renda, saúde mental, entre outros fatores (10-15). Além disso, foram observadas associações entre IA e uma pior qualidade da dieta em universitários, marcada pelo baixo consumo de frutas e verduras, principalmente (12, 14), o que reforçou a importância dos restaurantes universitários na garantia do acesso a uma alimentação adequada e saudável para universitários (16).

Apesar disso, a literatura ainda é limitada quanto à investigação da relação entre IA e o consumo alimentar de estudantes durante a pandemia de COVID-19, sobretudo no contexto pandêmico, no qual o acesso aos alimentos, em quantidade e qualidade, foi dificultado pelo isolamento, pelos impactos socioeconômicos e o fechamento das universidades, sem as quais não foi possível o acesso, por exemplo, aos restaurantes universitários. Portanto, o presente estudo teve como objetivo verificar a associação entre Insegurança Alimentar e marcadores de consumo alimentar em universitários durante a pandemia de COVID-19.

Materiais e Métodos

Foi realizado um estudo transversal em universidades de cada uma das cinco regiões do Brasil, representadas por cinco estados: Acre, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Norte e São Paulo. A população do estudo foi composta por estudantes de graduação e pós- graduação das seguintes instituições: Universidade Federal do Acre, Instituto Federal do Acre, Centro Universitário U:verse, Faculdade Pitágoras, Centro Universitário Unimeta, Centro Universitário UniNorte (Região Norte); Universidade Federal de Mato Grosso (Região Centro-Oeste); Universidade Federal do Paraná (Região Sul); Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Região Nordeste) e Universidade de São Paulo (Região Sudeste).

A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário on-line, de agosto de 2020 a fevereiro de 2021, período que compreende o primeiro ano da pandemia de COVID-19. Foram incluídos 5520 alunos de graduação e pós-graduação que consentiram participar da pesquisa. Um total de 113 respondentes foram excluídos devido a inconsistências nas respostas sobre o nível de (in)Segurança Alimentar, totalizando 5407 participantes neste estudo.

A Insegurança Alimentar foi avaliada por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) de 14 itens, adaptada e validada, que é estruturada em quatro níveis, classificando as famílias de acordo com o acesso e a disponibilidade de alimentos em SA e IA leve, moderada e grave, onde são classificadas pela soma de respostas positivas e organizadas dentro dos pontos de corte, segundo a presença ou não de indivíduos menores que 18 anos no domicílio (17).

O consumo alimentar foi avaliado por meio dos marcadores de alimentação saudável da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL), do Ministério da Saúde brasileiro, que avalia a frequência semanal do consumo de feijão, frutas, verduras e legumes, lácteos, carnes, frango e ovo, com as seguintes categorias de resposta: “nunca”, “quase nunca”, “1-2 dias”, “3-4 dias”, “5-6 dias” e “todos os dias” (18).

As variáveis sociodemográficas e os marcadores do consumo alimentar foram apresentados em frequências absoluta e relativa. Para análise da associação entre os níveis de IA e o consumo de cada grupo de alimentos foram utilizados modelos de regressão logística, tomando como variável dependente os marcadores de consumo alimentar (feijão, frutas, verduras e legumes, lácteos, carnes, frango e ovo), com categoria de referência o consumo ≥ 3 dias, e como variável independente os níveis de (in) Segurança Alimentar. As análises foram conduzidas com auxílio do software R, versão 4.2.1, e foi considerada significância estatística de p < 0,05.

Os protocolos de estudo foram aprovados em cada um dos centros, pelos conselhos de ética em pesquisa da Universidade Federal do Acre (CAAE 36814320.9.0000.5010, nº 4.267.655), Universidade Federal de Mato Grosso (CAAE 36582820.0.0000.8124, nº 4.242.364), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CAAE 35918620.7.0000.5292, nº 4.391.606), Universidade Federal do Paraná (CAAE 36250320.2.0000.0102, nº 4.256.436) e Universidade de São Paulo (CAAE 36402820.9.0000.5421, nº 4.232.859).

Resultados

Dos 5407 participantes, 67,4% eram mulheres e 88,3% eram estudantes de graduação, com média de idade de 25 anos para ambos (dp = 7,4 para sexo feminino, e dp = 7,9 para estudantes da graduação). Com relação à IA, 25,9% da amostra apresentou IA leve, 7,4% IA moderada e 4,1% IA grave, de modo que mais de 37% dos participantes apresentaram algum grau de IA. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos participantes, segundo níveis de (in) segurança alimentar.

Tabela 1 - Variáveis sociodemográficas de acordo com os níveis de (in)Segurança Alimentar dos universitários, Brasil, 2020-2021.
Tabela 1 - Variáveis sociodemográficas de acordo com os níveis de (in)Segurança Alimentar dos universitários, Brasil, 2020-2021.

A Tabela 2 apresenta a frequência de consumo alimentar dos grupos de alimentos de acordo com o nível de IA. Houve menor frequência de consumo de feijão quanto maior o grau de IA, maiores percentuais de consumo diário de verduras e legumes para indivíduos em SA e alto percentual relatado como “quase nunca” para consumo de frutas e lácteos em casos de IA grave. O grupo carnes apresentou elevado percentual para consumo de 3 a 4 dias na semana para SA e o consumo relatado como “nunca” foi semelhante para pessoas em SA e em IA grave. Para o grupo frango, o consumo de 3 a 4 dias por semana foi semelhante para todas as categorias. Quanto ao consumo de ovos, foram observados elevados percentuais para a frequência de 3 a 6 dias por semana para indivíduos em IA grave.

Tabela 2 – Frequência de consumo dos grupos de alimentos dos universitários segundo marcadores do VIGITEL conforme níveis de (in)Segurança Alimentar, Brasil, 2020-2021.
Tabela 2 – Frequência de consumo dos grupos de alimentos dos universitários segundo marcadores do VIGITEL conforme níveis de (in)Segurança Alimentar, Brasil, 2020-2021.

Na Tabela 3 são apresentados os resultados das análises de associação entre os marcadores de consumo de cada grupo alimentar e a classificação de (in)Segurança Alimentar, tomando como categoria de referência o consumo ≥ 3 dias. Com relação ao consumo de feijão, houve chance quase duas vezes maior de consumo inferior a 3 vezes por semana entre aqueles em IA grave. Quanto ao consumo de frutas, verduras e legumes, lácteos e carnes, quanto maior o grau de IA, maiores as chances de um consumo reduzido. Por outro lado, a chance de consumo ≥ 3 dias de frango e ovo foi maior entre aqueles em IA leve e quanto maior o grau de IA, respectivamente.

Tabela 3 – Coeficientes e razões de chance dos modelos de regressão logística entre os marcadores de consumo alimentar e os níveis de Insegurança Alimentar, Brasil, 2020-2021
Tabela 3 – Coeficientes e razões de chance dos modelos de regressão logística entre os marcadores de consumo alimentar e os níveis de Insegurança Alimentar, Brasil, 2020-2021

Discussão

O consumo dos diferentes grupos de alimentos variou entre os universitários, conforme o nível de (in)segurança alimentar.

Dentre os principais achados, destaca-se uma menor chance de consumo de feijão entre aqueles em IA grave; maiores chances de consumo inferior a 3 vezes por semana para frutas, legumes e verduras, lácteos e carnes, quanto maior o grau de IA; maior chance de consumo de frango, ≥ 3 dias por semana, para universitários em IA leve; e maior chance de consumo de ovo, quanto maior o grau de IA.

Mesmo antes da pandemia de COVID-19, o Brasil já registrava uma tendência na redução da aquisição de alimentos, quanto maior a gravidade da IA, o que possui impacto no consumo alimentar da população (19). Percentuais semelhantes daqueles que nunca consomem carne (em torno de 15%) tanto em SA quanto em IA grave, verificados nesta pesquisa, destacam as disparidades do poder de escolha em ambos os casos.

Um maior consumo de carne de 1 a 2 dias por semana e uma maior chance de frequência de consumo de frango e ovos para aqueles em IA refletem um cenário vivenciado no Brasil durante a pandemia, de alta do preço de alimentos in natura e de recursos essenciais como o gás de cozinha (20, 21), chegando a registrar filas para obtenção de alimentos que seriam descartados e de partes como carcaças de frango e ossos de bovinos, além de um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados (22, 23). O consumo aumentado de frango e ovos nos níveis mais graves de IA pode ser justificado pela substituição de carne vermelha em virtude da elevação do preço desse alimento.

Além disso, estudos constataram que o acesso adequado à alimentação e a qualidade da dieta de universitários foram impactados pela pandemia de COVID-19 em diferentes partes do mundo, com repercussões também para o desenvolvimento e/ou agravamento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), estresse e distúrbios do sono (24 - 31). Dados recentes revelam que 40,3% e 17,1% dos jovens de 18 a 24 anos no Brasil estão com excesso de peso e obesidade, respectivamente. No período pré-pandêmico, a prevalência de DCNT nessa faixa etária, como hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e depressão eram de 3,9%, 0,5% e 7,7%, respectivamente, e, após a pandemia, estes números mais que dobraram (8,2%, 2,2% e 14,1%, nesta ordem) (32).

Compreender o perfil de consumo alimentar e os fatores que influenciam o acesso adequado à alimentação de universitários é fundamental para subsidiar a tomada de decisão sobre políticas públicas e de apoio universitário no âmbito das instituições de ensino superior. A disponibilização de recursos emergenciais durante a pandemia de COVID-19 por parte do Governo Federal não foi suficiente para mitigar os efeitos da crise sobre o acesso à alimentação devido às medidas e cortes orçamentários, anteriores à pandemia (5).

O panorama de crise também interferiu no modo como as pesquisas foram conduzidas, suscitando, por exemplo, o uso de ferramentas de coleta on-line de dados - mais acessíveis àqueles em melhores condições socioeconômicas -, conforme utilizado neste estudo, o que pode ser considerado uma limitação. Entretanto, os achados deste trabalho refletem o panorama dramático de acesso à alimentação adequada e saudável pela população universitária no Brasil durante o período de pandemia, sobretudo ao considerar a abrangência multicêntrica dos dados utilizados.

Conclusões

Os estudantes universitários vivenciaram situação de extrema vulnerabilidade durante a pandemia de COVID-19, com impactos no consumo de alimentos saudáveis e consequente restrição da dieta. Sugere-se que ações podem ser executadas nas universidades públicas, como implementar programas de assistência que visem a Segurança Alimentar e nutricional, objetivando, especialmente, a alimentação adequada e saudável.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (431053/2016-2), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (88887.903676/2023-00), e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2022/13640-7).

Conflito de interesses

Os autores declaram que não há conflito de interesses.

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Publicado: 29/01/2024